quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

COMER LOCALMENTE, PENSAR GLOBALMENTE

Prof.ª Dr.ª Isabel do Carmo – Médica Especialista em Endocrinoloia e Nutrição
A ALIMENTAÇÃO E OS NOVOS MEIOS DE PRODUÇÃO

Os alimentos, tal como os outros produtos, estão hoje sujeitos a novas estruturas e meios de produção. No princípio do século XX ainda havia a agricultura tradicional. A meio do século XX instalou-se a indústria agro-alimentar, que tende a controlar tudo desde a semente até à comercialização dos produtos alimentares.

Os novos meios incluíram a introdução de máquinas, que diminuíram o número de trabalhadores agrícolas e incluíram também meios químicos, como fertilizantes e pesticidas.
A agricultura industrializou-se e a produção intensiva foi instalada.

Nos últimos anos a produção de alimentos adoptou os meios da restante indústria - a informática. Também nesta área o reino da electrónica estabeleceu-se sem fronteiras. A rapidez de comunicação e de aplicação dos mesmos métodos trouxe uma mudança ao nível do objectivo e subjectivo, no que diz respeito à noção de espaço e tempo.

AS NOVAS FORMAS DE ESTRUTURA ECONÓMICA

Pode-se assim aplicar à análise da produção alimentar aquilo que se aplica a qualquer outro produto. No entanto, temos sempre que nos lembrar que se trata de um produto essencial à vida e com uma parte da produção obrigatoriamente ligada a um lugar, porque está ligada à terra. Porém, aquilo que se verifica é que há, na produção alimentar, uma abolição de fronteiras, uma abolição do conceito de nação e mesmo uma abolição do estado. Trata-se de um internacionalismo ... económico.

A produção de alimentos em toda a cadeia estabelecida já pouco ou nada obedece a regras ou planos nacionais e às necessidades das produções locais. Os Governos já muito pouco governam em relação à alimentação, limitando-se a enviar os seus delegados às instâncias internacionais, os quais representam os interesses da indústria agro-alimentar. Não há estados a regular a produção de alimentos. De facto, está-se a estabelecer um Governo Mundial da Alimentação, situado no núcleo central das grandes companhias, o qual decide tudo em relação ao que comemos. Mesmo as modas ‘’saudáveis’’...

No Governo Mundial da Alimentação, os principais centros localizam-se nos EUA. Neste aspecto a União europeia tem-se demitido a vários níveis, não defendendo a qualidade alimentar e cultural dos seus produtos.

Sabendo-se que a produção de cereais é fundamental para as decisões estratégicas, políticas e militares a nível mundial, é inquietante saber que os EUA exportam 50% dos cereais do Mundo e a União europeia apenas 14%.

As grandes Companhias dividem-se entre a Europa, os EUA e o Japão, mas cada vez mais se aglutinam, tendendo a uma concentração mundial, com sede virtual, mas com capacidade de decisão ao nível da América do Norte. A Unilever, a Néstlé, a Philip Morris, a Metropolitain, a Cargill, a Pepsi-Cola, a Coca-Cola, a Conagra, a Nabisco, a Grand, a BSN, a Taiyo Fishey e a Suntory são os centros de produção e decisão com tendência à concentração.

O caso Monsanto é exemplar. A Monsanto produz tudo, desde a semente até ao prato. As sementeiras mundiais estão dependentes da Monsanto, porque os cereais em causa são estéreis e não se autoreproduzem. É também a Monsanto que produz os fertilizantes e os pesticidas. E finalmente é esta companhia que produz os organismos geneticamente modificados, entre eles os resistentes aos pesticidas. Ou seja, a quantidade de pesticida aplicado pode ser maior.

A Monsanto tem comprado várias companhias nacionais, que mantêm o seu nome de ressonância local, mas que estão dependentes da Companhia-mãe. A Monsanto é neste momento o grande centro de decisão da alimentação mundial, acima dos Governos, acima dos Estados.

A EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA E AS DESIGUALDADES

Esta estrutura política e económica de produção alimentar é tanto mais importante quanto se sabe que há uma explosão demográfica, com muito mais gente a ter que alimentar.
Simultaneamente as desigualdades agravam-se.
Deste modo podemos mostrar em números o que se passa:

Habitantes na Terra:
• Até século XIX 1 bilião
• 1930 2 biliões
• 2000 6 biliões
2050 (projecção) 10 biliões

Distribuição:
• 20% da população mundial consome 80 % dos alimentos
• 800 milhões de famintos
• 2 biliões com carências várias

CONSEQUÊNCIAS ECONÓMICAS E CLÍNICAS DA SOBREPRODUÇÃO

Como a estrutura económica da produção alimentar não é construída na base do plano e mesmo o mercado tem-se revelado com fraco poder regulador, as consequências da sobreprodução têm sido nefastas para a economia e sobretudo para os seres humanos que habitam na área da abundância.

Como qualquer produto sujeito ao mercado, o produto alimentar é incrementado por campanhas de consumo, cujo fim é a aquisição. Ora acontece que os alimentos não se podem comparar a roupa ou relógios, porque vão ser ingeridos e integrar o próprio corpo do ser humano. E é óbvio que eles são produzidos, distribuídos e comercializados não com objectivos de saúde pública, mas unicamente com objectivos de lucro. Entrou-se assim numa área em que o consumo interfere directamente com a biologia humana e vai determinar o estado de saúde das populações.

Quanto às condições económicas e políticas da sobreprodução está à vista qual é a desregulação, levando a um excesso a montante, que nunca se destina à distribuição pelos famintos, mas sempre, ou à promoção ou à destruição. Por outro lado, a necessidade de produção desenfreada leva à erosão dos solos, ao efeito de estufa, ao emprego de químicos.

A industrialização deste sector e a promoção dos alimentos como algo que é vendido pela aparência leva a que actualmente 90% dos alimentos nos EUA sejam vendidos embalados, passando-se o mesmo com 70% dos que são vendidos na União Europeia. Estamos assim em pleno reino da embalagem, em que os alimento não são comprados pelas suas qualidades intrínsecas nutricionais, mas sempre pelas suas qualidade extrínsecas – a cor, o sabor, que lhe foi acrescentado ou alterado, a forma, a embalagem. Ao contrário dos medicamentos, cuja finalidade, a anulação do sintoma, é verificada pelo consumidor, coincidindo o objectivo deste com o do produto (apesar dos caminhos enviesados que aqui podem existir), os alimento são comprados não para fornecer proteínas, vitamina E ou magnésio, mas por características que não são as nutricionais.

Uma das características da promoção alimentar é transformar o alimento num produto hipercalórico, isto é, qualquer coisa contível num pequeno volume, facilmente mastigável, fácil e rápido de engolir e mesmo fácil de digerir. Sobretudo com gosto apetecível e que dê saciedade rapidamente. Como se vê nada disto tem a ver com a esfera dos macro ou micronutrientes. Ora os alimentos com estas características são os doces e as gorduras, que correspondem exactamente à produção de menor custo. Estão reunidas todas as condições para um desastre de saúde pública!

E é assim que a obesidade, a hipertensão, a hipercolesterolémia e as doenças cardiovasculares se tornaram uma epidemia, com grandes custos sociais os países ditos desenvolvidos ou industrializados. A sociedade de abundância cobra os seus custos! E acontece que estes custos são transversais às várias classes sociais. Nestes países as classes com mais obesidade são exactamente aquelas que têm maior poder de compra.

QUE FAZER?

Que fazer perante estas estruturas e este mundo? Podemos ir atrás, fazer uma reversão da história? Já não voltamos, nem isso seria desejável, ao camponês agarrado à terra de sol a sol. A única solução é a apropriação dos novos meios de produção. É pôr os novos meios ao serviço da felicidade do ser humano e não ao serviço da produção pela produção.

Para tal poderemos confiar numa visão ética, esperando que o produtor seja tocado por objectivos humanitários? Ou devemos admitir uma visão em que a ruptura e a apropriação comandam a criação de novas estruturas? É difícil dar respostas e criar alternativas. É em cada terreno e em cada circunstância que têm que se criar novas respostas.

Os novos meios criados pelo desenvolvimento da produção têm tido tempos e velocidades diversas nas várias partes do mundo. Mas não agora mais velozes. A abertura criada pelas luzes, no século XVIII, na Europa, levou dois séculos a estabelecer-se na prática da sociedade. No entanto, nos EUA isto foi mais rápido – levou um século. Calcula-se que na Coreia levou 30 anos e percebe-se que a sua generalização a toda a China está a fazer-se ainda mais rapidamente. Se a racionalidade teve estes tempos diversos na sua instalação, poder-se-á admitir que numa fase posterior, a da apropriação e aplicação dos novos meios ao serviço do ser humano tenha um percurso e uma velocidade mais rápidos. Esta é a perspectiva optimista. Porque a alternativa é a catástrofe.
Restante artigo (retirado de):

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