Como escreveu Pessoa, não basta não ser cego para ver as árvores e as flores. Se é preciso saber ver para realizar uma obra de arte, o mesmo se requer depois para compreendê-la, tal como com a Natureza.
Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores
Fernando Pessoa
Entre a esperança e o desespero vive-se uma odisseia iniciada num tempo sem princípio e, para ela, reclama-se perenidade e bom ambiente. A Natureza é o palco da aventura e os protagonistas, confrontados com os enigmas do universo e da vida, descobrem que a imaginação é um poderoso complemento da visão e deslumbram-se com a capacidade de criar. É por isso que, sob o mesmo céu e no meio de tantos fenómenos, sobressai a vastidão e precisão do conhecimento científico e cresce uma história fantástica, inspirada na infinita adição de obras de arte, de todos os tempos e de todas as origens. Ciências da Natureza e Arte, duas vias divergentes da mesma aventura intelectual, são o que de mais brilhante e de mais belo gerou a mente humana.
A paixão de conhecer apoderou-se do Homem e o desejo de compreender a própria existência e a complexidade prodigiosa do mundo visível alimenta-lhe o interesse por esse todo do qual faz parte. Ciência e Arte envolveram-se na empresa, por diferentes caminhos. O artista, cuja fantasia faz explodir como num sonho, usa uma dimensão de liberdade vedada ao cientista, este sujeito a leis rígidas, reconhece na crítica racional orientada pela ideia da verdade, o fundamento do seu trabalho. Haverá só diferenças entre um trabalho científico e uma obra de arte?
Ninguém será cientista se não estiver interessado em compreender o mundo e alargar a extensão e precisão do conhecimento científico segundo os quais este foi ordenado, afirma Kuhn; a Arte, não é mera técnica de entretenimento dos sentidos, nem passatempo de fazer reproduções, alerta Arnheim. Com efeito o desejo expresso nas palavras de Fausto (Goethe), que eu conheça o que o Universo / preserva intacto no seu âmago, manifesta que o criador artístico acalenta o sonho, de qualquer grande cientista da Natureza. Naturalmente que um conhecimento que se adquire através das peças de Shakespeare distingue-se do que resulte da pesquisa de biólogos e químicos e poderá vir a originar medicamentos eficazes na cura de doenças. Ambos são úteis.
Se não é finalidade da Arte duplicar habilmente a Natureza ou distrair, qual é então o seu objectivo e de que modo concreto o realiza? Se o artista não imita a Natureza por que a observa tão atentamente?
Fernando Pessoa disse que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores e Cézanne explicou por que razão contemplava a Natureza demoradamente. O tempo e a reflexão, afirma, modificam pouco a pouco a cena até que acabamos por compreender. Para o pintor e para o poeta a imagem na retina é apenas o começo de um fenómeno complexo. O lema de Leonardo Da Vinci, era Saber Ver. O grande cientista-artista, conferia tal poder às palavras “saber” e “ver”, que dizia: os olhos encerram a beleza do mundo inteiro...são os senhores da astronomia, assistem e presidem a todas as artes humanas...reinam sobre os vários campos da matemática... criaram a arquitectura e a perspectiva e...a divina arte da pintura.
Mas se é preciso saber ver para realizar a obra, quer seja literária, pictórica, escultórica ou musical, o mesmo se requer depois, para compreendê-la. Poderemos também dizer que não é bastante não ser cego para ver uma obra de arte. Se é verdade que as grandes obras de arte guardam ciosamente os seus segredos, sabe-se também que no horizonte de cada uma há sempre uma interpretação a pairar. António Damásio, declara que a partir dos sinais da retina revelando dimensões, cores, formas, movimentos, o cérebro constrói enredos, verdadeiros ou não, sobre esses objectos e acontecimentos. Será este fenómeno que a arte irá sublimar em ideias e em essências espirituais. A suprema questão da obra de arte, afirmou James Joyce no Ulisses, está em quão profunda é uma vida que ela gera. A pintura de Gustave Moreau é a pintura das ideias. A mais profunda poesia de Shelley, as palavras de Hamlet põem o nosso espírito em contacto com a sabedoria eterna.
Infelizmente a Arte é um universo pouco visitado pela maioria das pessoas e, por isso mesmo, com pouco peso na sua vida. Os motivos serão muitos e variados e o pouco que se faz para que esta situação se inverta, ou é em vão, ou poucos resultados se colhem. Entre os insensíveis à obra de arte não estarão os responsáveis pela degradação do ambiente e pela perturbação da harmonia entre os homens? Entre eles talvez estejam também, os que possuem uma certa espécie de ventura, que semeia secura por onde passa.
Para apreciar o que os museus exibem e as salas de concerto dão a ouvir, para saborear o que uma boa leitura oferece, para estremecer perante uma catedral gótica é preciso usar o lema de Leonardo, é preciso aprender a Saber Ver.
O Sol de Todos
Os olhos da minha amada não se comparam com o Sol
Shakespeare
A Natureza exprime sempre algo que a transcende, afirma Mircea Eliade e, deste facto, tanto pode resultar uma teoria científica, como uma sinfonia, um poema ou uma pintura. O avanço da Ciência, porém, trouxe alterações a vários níveis, na relação do Homem com a Natureza. Assim, conhecendo-se cientificamente um fenómeno natural, o pôr-do-Sol por exemplo, será ainda possível, continuar a olhá-lo com o mesmo estremecimento de alma que proporcionava antes de ter chegado a explicação da Ciência? Este poema de Baudelaire sobre os ocasos, proporcionará o mesmo aprazimento antes e depois da aquisição de conhecimentos sobre o fenómeno?
A Natureza exprime sempre algo que a transcende, afirma Mircea Eliade e, deste facto, tanto pode resultar uma teoria científica, como uma sinfonia, um poema ou uma pintura. O avanço da Ciência, porém, trouxe alterações a vários níveis, na relação do Homem com a Natureza. Assim, conhecendo-se cientificamente um fenómeno natural, o pôr-do-Sol por exemplo, será ainda possível, continuar a olhá-lo com o mesmo estremecimento de alma que proporcionava antes de ter chegado a explicação da Ciência? Este poema de Baudelaire sobre os ocasos, proporcionará o mesmo aprazimento antes e depois da aquisição de conhecimentos sobre o fenómeno?
Os sóis-poentes
Revestem os campos
Os canais, a cidade inteira
De jacinto e ouro
O mundo adormece
Numa cálida luz.
O testemunho de certo cientista, sobre a questão dos efeitos da Ciência na relação do ser humano com a Natureza, interessa particularmente. É ele Hubert Reeves, conselheiro científico da NASA e doutorado em astrofísica nuclear. Conta Reeves que já na juventude vibrava perante um mar inflamado pelo Sol poente. Certo dia, porém, conhecia já os estudos do físico escocês Maxwell, estava diante do oceano sereno gloriosamente colorido pelo Sol, quando escutou uma voz interior que lhe dizia: Estes desenhos, estas formas, estas tonalidades cambiantes são as soluções matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsíveis e calculáveis. Nada mais do que isso ...No meu céu interior erguiam-se as equações de Maxwell, frias, inexoráveis. A sua luz crua abolira, assim me parecia, a frágil magia do céu rosa e do mar cintilante. Esta expressão, assim me parecia, que Reeves intercala, anuncia um desfecho simpático. Com efeito, no livro Malicorne, reflexões de um observador da Natureza, Reeves percorre uma trama compacta de caminhos, e o leitor acaba por concluir que o cientista encontrou explicações suficientes para continuar a deleitar-se com um pôr-do-Sol. De certo modo, este episódio, lembra a célebre resposta de Diógenes, dada a Alexandre o Grande, quando este, preocupado com a vida pobre que o filósofo levava, pergunta-lhe o que precisa para viver com mais conforto. A resposta, sobejamente conhecida não tardou: não me tires o meu Sol.
D. Quixote confortava Sancho dizendo-lhe que o Sol nasce para os maus e para os bons. Cervantes tinha razão, o Sol contempla todos, mas cada um recebe-o de seu modo e consoante as circunstâncias. Um pintor, um poeta e aquele profeta que ensinou a fazer da vida uma obra de arte, exemplificam. A luminosidade da Natureza, as variações de luz na sua relação com as formas surpreendiam os olhos de Monet que pintou cerca de quarenta “catedrais de Ruão”. Sempre a mesma fachada, sem céu nem solo, o pintor registou o efeito das variações da luz. Há a catedral de Ruão com Sol intenso, com sol, etc., etc. O poeta, supremo artista da palavra, utiliza-a ao serviço da fraternidade. Escreveu Pessoa: Bendito seja o mesmo Sol de outras terras que faz mais irmãos todos os homens. Jesus de Nazaré surpreende porque disse: Os justos resplandecerão como o Sol.
O Homem é inventivo, capaz de encontrar a saída de todos os labirintos, mas desenvolveu a inteligência mais rapidamente que as qualidades morais. As religiões apesar das boas intenções que as movem conduziram à intolerância e ao fanatismo, a Arte poderá ser um caminho para chegar à fraternidade ,à justiça, ao Amor. O Sol faz da Terra o nosso País.
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